sábado, 31 de agosto de 2013

Cozinhando para a sogra

Foto: receitasdecomida.com.br

*Texto escrito por Afrodite Boa Memória, e trata de simples exercício literário. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

Estava eu cozinhando, como geralmente gosto de fazer nos sábados caseiros, quando a memória começou seu processo de desprendimento e vagou pelo tempo. Foi parar lá no passando, quando eu, pré-balzaquinana, assim carinhosamente chamada à época pelo marido, vivia cheia de boas intenções e ilusões para com a sogra.

Ainda não haviam rodado a trilogia "O Senhor dos Anéis", com toda sua complexidade linguística e infindáveis ardis na luta contra o mal na Terra-média. Tão pouco Jane Fonda tinha arrasado na performance de sua personagem mais real em A Sogra. O fato é que resolvi cozinhar para a mãe de meu marido.

Como leitora ávida que ainda sou, tratei de selecionar o menu. Lembro vagamente do prato principal: uma espécie de lombo (ou era filé?) regado a um molho tipo madeira. Mas o entrevero não chegou até aí, a peleja já teve início na entrada, e essa lembro com riqueza de detalhes: "Sopa Parmentier".

Encontrei a dita receita num caderno de variedades de um jornal. Achei, na minha santa inocência, que agradaria. À base de alho poró, batata inglesa e creme de leite, o negócio ficou bom mesmo. Moléstia à parte, sempre tive prenda para as artes culinárias.

Jantar posto, mesa arrumada, família reunida e lá vai a entrada, recebida por todos com ansiedade e ao som do primeiro comentário, num tom despeitado: "É, o cheiro tá bom." Era a tiranossauro entrando em cena. O segundo veio antes de eu agradecer a gentileza. "Isso é o quê?". Não era qualquer isso. Era um isssso sibilante entre língua bifurcada. E eu, meio débil, respondi.

Até aí tava fichinha. A chatice começou quando o terceiro comentário, que perdurou pelo jantar afora, foi o arremate: "Tá gostoso, mas isso (novamento o issssso) é sopa de envelope, né?". Aí foi que a ficha começou a cair para a idiota aqui, que já meio chateada respondeu: "Não, Dona fulana, é Crrrrreme Palmentier". E foi aí minha primeira aula de bifurcação de língua, com a que seria minha Mestra Pós-Doc.

Não é que a infeliz estava insinuando expressamente (se é que é possível, mas ela sempre foi ninja nessa arte) que eu havia colocado gato por lebre na entrada do jantar? Ou melhor, que eu havia comprado sopa pronta de envelope no mercado. Nada contra esse prático alimento. Eu mesma já me socorri dele em algumas vezes. Mas havia me dedicado ao jantar, feito tudo com o maior gosto para estar recebendo aquelas alfinetadas.

O problema, hoje entendo, é que a sopa realmente estava boa. E todo mundo gostou, inclusive a própria. E era demais para ela reconhecer que eu também cozinhava legal, apesar de iniciante. O jantar prosseguiu com conversas amenas, risadas e tilintar de talheres. Mas entre um assunto e outro, e até mesmo no meio de um, ela novamente questionava: "Mas está com sabor que sopa de envelope!", "Issssso é sopa de envelope...", até sacar o golpe de misericórdia: "Como é que se faz?"

Após essa iniciação, cozinhei muitas vezes para ela, embora já decorrido bastante tempo desde a última vez. Ela também cozinhou muitas vezes para mim. Tem um tempero maravilhoso. É tão boa na cozinha quanto na crítica maliciosa e na provocação. Foi minha mestra, como falei. Hoje não é mais, pois não o permito. Há o tempo de aprender e há o tempo do chega pra lá.

A quem interessar possa, segue a receita. Cautelas a quem irá servir.
SOPA PARMENTIER
INGREDIENTES:
2 ALHOS PORÓS GRANDES
1 COLHER CHÁ SAL
2 GEMAS
1 LATA CREME DE LEITE
PEDACINHOS DE PÃO TORRADOS NA MANTEIGA
MÉTODO
1 - LAVE O ALHO, CORTE EM 4 NO SENTIDO DO COMPRIMENTO E PIQUE-O. DESCASQUE E PIQUE AS BATATAS. LEVE TUDO AO FOGO EM ÁGUA COM SAL OU, QUERENDO, EM CALDO DE CARNE OU GALINHA. DEIXE COZINHAR ATÉ QUE A BATATA E O ALHO PORÓ ESTEJAM QUASE DESMANCHADOS. ESPREMA NUMA PENEIRA GROSSA OU NO PASSA PURÊ.
2 - BATA AS GEMAS COM O CREME DE LEITE NUMA TIJELINHA À PARTE. ACRESCENTE UMA CONCHA DO CALDO JÁ PRONTO PARA DISSOLVER BEM A MISTURA. JUNTE À SOPA E SIRVA COM OS PEDACINHOS DE PÃO. SE VOCÊ TIVER PÃO DORMIDO, FAÇA AS TORRADAS.